terça-feira, 19 de março de 2013

Amor sem limites




Esta é a história de uma senhora com setenta e oito anos e de um senhor com setenta e sete. Já estão juntos há mais de cinquenta anos, mas nos últimos anos, a senhora fora consumida pela “doença da alma”, mais conhecida por Alzheimer. Essas duas pessoas são os meus bisavós, e não podia ter mais orgulho neles.

Com as suas mãos grandes e de uma pele espessa e suja, Manuel agarra na malga da sopa de feijão e enche uma colher, que depois leva à boca de São. Ouve-se o engolir, a sopa de feijão, a correr e a correr pelo corpo de São. E São sorri. Manuel sorri-lhe de volta. Com dois dedos, ajeita o cabelo dela, esbranquiçado, quase tão branco como neve. E ela ri-se. E ele ri-se. Os olhos verdes de São, verdes como esmeraldas cintilantes, são irrequietos, mas vazios. Vazios. Os de Manuel são castanhos e cansados, mas ambos têm um olhar que conjugado constrói algo de extraordinário, um olhar apaixonado, um olhar vazio, cheio de tudo mas cheio de nada. E São ri-se. Como se a sua vida dependesse disso. Ri-se. E de repente, assim muito rápido, como quem fecha e abre os olhos involuntariamente, São deixa cair uma lágrima de fúria, agarra no cobertor que Manuel lhe tinha posto em cima das pernas para que ficasse quentinha, e tenta atirá-lo para o chão. “Tira-me esta merda, tira-me esta merda. Estás a ouvir? Tira-me esta merda.” É a única coisa que diz. E grita. E vai gemendo até que Manuel lhe diga que já vai tirar. Mas depois nunca tira, porque ele só quer que São fique quentinha. Ele só quer o bem dela. São não faz por mal, faz parte da doença que a consumiu. Esta troca de emoções, acaba tudo por se tornar normal. E São acaba por se esquecer, e de repente, já sorri de novo. E agora, parece uma criança contente correndo com suas bonecas de trapos pelo jardim. E Manuel fica contente com ela. E no ar, sente-se o odor de uma infância fantástica, conjugada, pintada a preto e branco. Lá vai mais uma colher de sopa para a boca de São. “Linda menina!” Manuel sorri. E de novo, São sorri. Esta troca, este contágio de sorrisos, já tão habitual. “A minha mãe está muito doentinha.” São geme, quase que a chorar. Manuel agarra-lhe a mão e a acaricia-lhe. A mão dela está inchada, pois ela não se move. Manuel inclina-se para beijar a bochecha de São, mas ela reage amedrontada. E o seu tom de voz eleva-se. “A minha mãe está doentinha!” E agora, grita. Os olhos de São, a arderem em dor e desespero. Mas Manuel é paciente e consegue acalmá-la. Mais uma vez. E lá vão mais duas colheradas da sopa de feijão. E novamente, a troca, o contágio de sorrisos. Manuel sussurra “São, quem sou eu? Como é que eu me chamo?”. São olha para Manuel nos olhos. E desta vez, torna-se tão profundo, que quase dói. São não sabe responder à pergunta que lhe fora posta. E depois, esquece-se de tudo, e desvia o olhar. A pergunta fora abandonada, fora esquecida, ficara a flutuar, sem saber para onde ir. E depois, lembra-se do cobertor e de como a incomodava. E “Tira-me esta merda! Tira-me esta merda!”. E Manuel por momentos desliga-se do mundo e fecha os olhos. E inspira. E volta acalmar São. Mas São volta e faz e diz sempre as mesmas coisas. E Manuel tem sempre de a acalmar. Mas Manuel é paciente. Sempre fora. E a pouco e pouco, com a situação com que lida, aprende a sê-lo ainda mais. Porém, Manuel não é sempre forte. E Manuel chora também, às vezes, escondido na sua própria alma, ele chora. E não são precisas lágrimas para chorar. Basta haver dor, ou então, basta haver amor. Chora porque São é linda, tanto por fora como por dentro, e porque a ama e porque faz sacrifícios por ela. Demasiados. Mas ele sabe que São merece todo o amor e cuidado do mundo, ou ainda mais, porque São sempre tratou dele. E isso é amor. Verdadeiro amor. Pelo menos é o que eu acho. E às vezes, sinto a alma de Manuel a gritar “Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei quem ela é.”

Edna, Nº 9, 8º C